quarta-feira, 14 de abril de 2010

Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore


O verdadeiro sentido da palavra "singelo" se encontra desenhado com traços audio-visuais perfeitos no filme Cinema Paradiso. "Alfredo, é belíssimo!", como diria o menino Totó na cena em que seu amigo bigodudo projeta imagens de um filme na parede de uma casa para que o público que não havia conseguido entrar no cinema por causa da lotação pudesse também assistir do lado de fora.

Cinema Paradiso foi sem sombra de dúvida o melhor filme a que já assisti. Incontáveis foram as vezes em que me peguei com um sorriso infantil no rosto. As cenas trouxeram lembranças remotas e alegres da minha infância. Totó viveu coisas que eu vivi e que vivo até hoje. A primeira namorada, as primeiras salas de projeção (Roxy, no Rio de Janeiro, e Cine Rio Branco, em Varginha, Minas Gerais, diga-se de passagem), a pequena cidade deixada para trás e principalmente o nascimento do amor pelo cinema.

Terminei o filme com o colo molhado por lágrimas. Lágrimas de alegria e de agradecimento a Giuseppe Tornatore, que me fez um bem danado com a mágica de sua história. Uma sensibilidade sem par. Seu roteiro e sua direção foram tão fascinantes que me transportaram para a sala de projeção mais perfeita que possa existir, ainda que estivesse assistindo ao filme diante de uma tela de computador num quarto escuro. Eu vivi na pele de Totó em Cinema Paradiso. Aliás, eu fui o menino Totó. Tive as mesmas paixões, as mesmas angústias e medos, o mesmo amadurecimento, os mesmos adeuses e as mesmas idas e vindas a que todos estamos sujeitos.

Hoje sou Totó adulto, com um pouco de cabelos já grisalhos, assistindo ao mundo com um sorriso que se permite o salgado sabor de algumas lágrimas, sob a perspectiva da lente desse cineasta que vive em meu próprio espírito.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Asas do Desejo, de Wim Wenders


Poderia escrever muitas coisas sobre o belíssimo filme Asas do Desejo, mas vou me ater à transcrição da belíssima cena em que dois anjos divagam, dentro de um carro estacionado, sobre o desejo de sentirem as mesmas coisas que o ser humano. É dada uma importância poética a detalhes tão banais do nosso dia-a-dia, nos colocando como seres desatentos às simplicidades da vida.


ANJO 1

E tu, que tens para contar?

ANJO 2
(falando com satisfação e desejo)

Uma transeunte fechou o guarda-chuva e ficou encharcada. Um aluno descreveu ao professor como brota uma planta da terra, e este ficou espantado. Uma cega tateou o relógio quando me sentiu.
É fantástico viver espiritualmente. Dia após dia testemunhar para a eternidade o que há de puro, de espiritual nas pessoas.
Mas às vezes me farto desta eterna existência de espírito. Nessas alturas gostaria de não pairar eternamente. Gostaria de sentir um peso que anulasse a infinidade e me segurasse à Terra. A cada passo ou a cada golpe de vento gostaria de poder dizer: “Agora, agora, agora” e não “desde sempre” ou “para todo o sempre”. Sentar-me à mesa e jogar as cartas, ser cumprimentado, nem que seja só com um aceno. Sempre que o fizemos, foi a fingir. Fingimos que pescávamos, fingimos que nos sentamos numa mesa a comer e a beber, que nos serviam cordeiro assado e vinho nas tendas no deserto. Era tudo a fingir.
Eu não quero gerar um filho, nem plantar uma árvore, mas seria bem agradável chegar a casa cansado e dar de comer ao gato. Ter febre, ficar com os dedos sujos de ter lido o jornal... Não me entusiasmar só com coisas do espírito, mas com uma refeição, com a curva de uma nuca, de uma orelha. Mentir descaradamente. Ao andar, sentir o esqueleto mexer-se a cada passo. E finalmente supor ao invés de sempre saber tudo. Poder dizer “ah”, “oh” e “ai” ao invés de “sim” e “amém”.

ANJO 1

Poder, ao menos uma vez, entusiasmar-me com o mal. Extrair todos os demônios da Terra, dos que por nós passam, e afugentá-los para bem longe. Ser selvagem.

ANJO 2

Ou experimentar o que se sente quando se tiram os sapatos debaixo da mesa e se estendem os dedos descalços.